terça-feira, maio 31, 2011

diálogo com pretensão

É, faz tanto tempo...

...que não nos vemos...

...e nem nos falamos.

Tenho sonhado com você.

Eu sonho dia sim dia não.

E o não?

Não sonho. Não lembro. Hoje é não, e tenho a impressão de ter ido dormir pensando nisso.

Nisso?

Que eu não sonharia com você.

Mas é bem capaz estarmos sonhando. Eu não vim até aqui.

Nem eu.

Nem mesmo me levantei e escovei os dentes.

Eu só me lembro de ter escovado os dentes e me deitado.

Mas hoje não é o dia não?

Sim.

E mesmo assim estou no sonho?

Isto é um sonho?

Não parece. Sinto seus pés frios embaixo do lençol.

Eu sinto seus pelos das pernas nas minhas.

É, faz tanto tempo que nos amamos...

E nos enganamos...

Tenho sentido a sua falta.

Eu sinto dia sim dia não.

E o sim?

Não é hoje.

É quando?

Amanhã.

Quando eu levantar e escovar os dentes?

E ir embora.

Mas se eu não vim...

Então eu já sinto.

terça-feira, maio 17, 2011

Práticas da meia noite

Você, eu não sei, mas ela fez abuso do andar da carruagem, zombando da morte e da paciência, talvez tivesse a sorte da lua na casa 8 ou nos caminhos que deslizaram para a meia noite, lugar tão inóspito que a ninguém pertence. Disse que se lembrava dos seus passos na água, foi isso mesmo? Era o que também dava ideia de deslocamento, dos mesmos pés suspensos como se andassem sobre a água, e depois desviando dos paralelepípedos ela se lembraria do incêndio na padaria, quando de longe via um castelo da infância pegando fogo no meio do seu quarto às práticas da meia noite. Você dizia a ela que melhor que Peter Pan, ela viveria para sempre quando lavava os pés no chuveiro gelado da casa que não tinha janelas, mas frestas por onde entrava a curiosidade do vizinho. E nessa noite ela segurava a chuva com o pensamento, encostada à parede com a mesma vontade de soltar-se para longe, para aquela ladeira santa que ficava a quatro anos de distância, e assim lembrava o mundo de vocês num quadro preguiçoso que toda manhã ao acordarem tinham de emoldurar outra vez, nunca pertenciam à mesma noite inteira. Quando sem querer, você esbarrou na lembrança dela, como uma carta do Tarot mística, estrela e maçã. Os olhos risonhos inundaram a rua, e ela nem se dava conta que abrindo o guarda-chuva também guardava tudo para fora do pensamento. O castelo, o chuveiro, a meia noite. Um minuto depois, com a carruagem estacionada em frente à casa, o copo d’água que ela consigo dividia já estava vazio.

domingo, maio 15, 2011

diálogo com a tormenta

vigília em estado bruto

quero digerir telefones,
adormecer plásticos monstros sacrifícios,
que a abstinência de realidade delira imperfeição,

o que o corpo não vê a mente perdoa

quinta-feira, maio 12, 2011

.

eu tenho a licença poética para parar o tempo,
no tempo.

* foto double breast por erwin blumenfeld, 1948

domingo, maio 08, 2011

simples

hoje vejo como é simples o que o vizinho escreve, o que lhe corre pelo pensamento senta-se nas palavras. como o gesto de descascar a laranja, de volta em volta, com a faca desnudando a fruta sem precisar retomar o corte. coisa de destreza. coisa bem afiada na mão de que quem acha certo o que faz. é simples também dizer o que se passa pela memória quando se lembra. quando se lembra. às vezes tenho só as palavras chaves do seu discurso, então manipulo o que quero acontecer, falando pelos seus olhos faço dizer o que já foi preterido sem que isso soe meu. o que é seu. é que seria mais simples se eu prestasse atenção. no caminho da volta, depois, que a ida não tem mais particípio e me encontro em meio dessa sua, nossa história toda que ajudei a inventar. na próxima vez que me avise o tempo de parar. quem não estiver distraído. olho para o prato, e a casca inteira me dá vontade de revestir o bagaço da laranja. mas é melhor que não. é melhor mesmo colocar tudo na lixeira porque é simples esconder o que se pensa, mas em algum momento o cheiro da omissão fica evidente, o mofo nos olhos é o sinal de que a validade dos seres é breve. e das coisas que são ainda mais breves. vizinho que retorna à casa percebe se está sozinho, a luz apagada não precisa de explicação. é simples.