domingo, setembro 28, 2008

fala

como pude ter me tornado tão cruel... abomino que assim me sejam, e chamo-lhes de cachorros por língua alheia, dou-lhes à boca o nome. não me recordo, mas eu já deveria ter acertado as contas com deus, ou será ele quem me aguarda com a sentença interminável. pois meus pecados e eu, percorrendo aquela avenida silenciosa, estaríamos de acordo com qual destino de sugestão dantesca? e reparando naquele vazio enquanto caminhávamos, era precisa a derradeira palavra, já antevista, jazida incertamente entre uma submissão e outra omissão, variavelmente carnal. por uma persistência desobedecida, uma catarse incontida, uma cadência de repetir os mesmos maus gestos, também um vício de mau gosto. não meus... é inútil, sempre errante, por toda a eternidade.

o que os olhos ardem, o espírito palpita em horas claras, assim que ofuscam qualquer clareza que lhe seja imprescindível. às vezes, sinto chorar em mim o quebrar do tempo em coisas passadas que não mais se fazem sentido; faz-se, por conseguinte, um derramar de memórias anônimas. esqueço até o que virá acontecer quando assim me reverbero num ponto de fuga caleidoscópico, sem fresta, nem aresta. o pôr da lua, se não chega a ser um parto de dor, quase se perpetua num contrato de cegos, acorrentados uns aos outros, trazendo instantes de não se sabe onde para não se sabe quando. mas isso é inerente a todos que não sabem o que fazer com os ponteiros insones.

quinta-feira, setembro 18, 2008

quinta-feira, 18 de setembro de 2003

encontrei um banco de praça dentro da labareda de vinho que tomei ontem com uma velha amiga. sentadas nele enrolamos rochas de outrora alegres como os anos passados, longos e distantes. – ontem mesmo escutei este disco... – ...ainda me lembro daquele cílio que ficou no dedo. – a história continua assim.

a noite que chovia molhou o mundo inteiro, saí ao frio para aliviar minha sede. ouvia-se o som da capoeira na rua em que moravas. sentei-me à porta e desviei a atenção para o cachorro uivando de saudades de quê. o tempo se cansava e afastei-me de mim, corri sem voltar os olhos, o chão ia desaparecendo enquanto eu caía no profundo corpo. tua janela sempre aberta se fechou para o cachorro uivando de saudades minhas. eram o tempo e os olhos do cão. tentei me secar, mas ainda me retém a umidade de tudo.

durante a sessão, ele pensou que nunca mais voltaria àquele cinema, nem mais assistir aos filmes que também passavam ali. faria greve das vontades do mundo, o fim da graça daqueles anos mudados pelos girassóis que distribuía entre os amigos. depois pensou em arrumar as malas e contar as montanhas que encontrasse pela estrada, voltando para o lugar que jamais teria novamente. não teria o mesmo sabor, e o tédio o dominaria sem preguiça. a lua é a mesma, enfim, teria a paisagem da janela de sempre.

quarta-feira, setembro 03, 2008

Delírio Náufrago

sorriso náufrago
instantâneo instintivo
peculiar náufrago
malogrado perder-se espontâneo narciso

inspirar enamorar-se
desenho náufrago
vida exterior
impulso imerso líquido

percorrer atmosfera
espaço cósmico
cortante náufrago

quando existe irreversível
escuro espectro
devanear-se fantástico

fato fábula
mito náufrago

inebriar-se singular
calar-se face serpente
remoto náufrago músculo

inefável fluido
diáfano ruído

derramar-se peixe
oscilar-se ósculo
maleável denso
desterro temporário

oriente náufrago

oráculo ermo
sombrio áspero
vestígio náufrago

radiante efêmera
a duração do silêncio

o espaço entre linhas escritas
inolvidável devorar
insaciável vazante
delírio náufrago

(Daya Gibeli/Camila Marquez)